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16 November 2016 Written by  Ricardo Ribeiro

Pessoas: Zé António, de São Tomé

O Zé António entrou na minha vida um par de horas depois de aterrar em São Tomé. Eram umas sete e meia da manhã, tinha deixado as coisas em casa do meu anfitrião, e ia andando para a cidade, desejoso de explorar aquele mundo novo. E, ao terminar a descida que conduzia ao início da avenida marginal, lá estava ele, magricela, com aquele seu jeito descontraído.

Atirou um olá casual, e eu, claro, fresco que nem uma alface em terra estranha, desconfiei. Para os meus botões fui pensando… “mau, já começamos… quem é este agora… o que é que  ele quer… “.  Com o cumprimento devolvido de forma seca, ele contra-atacou  com uma risada bem-humorada.

“-  Já vi que não se lembram de mim. Chegaram hoje, não foi? Pois, eu trabalho no aeroporto e vi-os lá”

E com esta frase colou-se a nós. De nada adiantou o meu silêncio sorumbático. O José António tinha chegado para ficar. E assim caminhou ao nosso lado ao longo de toda a marginal, anunciando desde logo que nos ia mostrar aquilo e acoloutro e insinuando-se como guia não oficial, e decididamente não solicitado, para as próximas horas. Estava destruido o meu sonho de um dia de errância descontraida pela cidade de São Tomé.

Mas havia de algo de surpreendente: a companhia do homem estava-me a agradar. Sentia algo de positivo, uma aura que inspirava confiança. E foi assim que, já conformado, o segui por todo o lado. Ele, expedito, dispensava uma explicação aqui e acolá, mostrava o melhor local para obter uma foto, atravessava com à vontade multidões, cumprimentando à esquerda e à direita, resolvendo com prontidão o menor problema que nos pressentisse.

E de repente, estava visto tudo o que havia a ver na cidadezinha. Eu, cansado por um vôo que levou toda a noite e pelos quilómetros palmilhados pela manhã dentro, fiz um ultimato:  já chegava, agora, era tempo de sentar e beber uma cerveja. Ele levou-nos então a um restaurantezinho que se havia de tornar pouso costumeiro nos dias de São Tomé e sentou-se conosco à mesa. Comida recusou, mas aceitou um sumo, bebida recomendada pelo médico para a convalescência da malária que lhe havia batido à porta há uns meses.

Quando nos despedimos dei-lhe quatro Euros pela companhia e pelos conselhos. Aceitou-os, agradecido. Soube que ganhava 55 Eur mensais pelo seu trabalho no aeroporto, quantia que não lhe dava para nada. A fome era uma realidade evidente. Para ele e para os seus. Falámos em passar um outro dia juntos, assim, meio amizade meio negócios. Deixei-lhe o meu número de telefone, mas não pude recolher o dele. Por detrás das razões mal-explicadas pressenti a vergonha de simplesmente não poder ter um e tive que me satsifazer com o contacto lá do cafezinho local.

 

O Zé António arranja-nos um cacau pronto a comer.

 

Nos dias seguintes vi-o um par de vezes. A primeira, por mero acaso. Apareceu-nos à mesa de um café. Ia a passar ali na rua, e, como tantas vezes sucede em São Tomé, deu conosco. Num outro dia veio ajudar no processo de  adquirir um cartão para o meu telefone. Algo desnecessário, porque a língua não é uma barreira e a empresa nacional de telecomunicações, subsidiária da TMN, funciona de forma aceitável.

Na segunda semana de São Tomé, quando nos decidimos a seguir a estrada que contorna a ilha pelo norte, falámos brevemente ao telefone. Apesar de a noite já estar a cair, resolvi fazer uma surpresa ao nosso amigo e procurá-lo na sua comunidade. Sabia vagamente onde deixar a estrada principal e pouco mais. Ali mesmo, no suposto cruzamento, perguntei a um são tomense se estava a ir bem. Ele respondeu que sim, mas que se lhe desse uma boleia para cima podia levar-nos até lá. “Bora aí!”. Foi amizade imediata. Perguntei-lhe se conhecia um tal de José António. Que não, não estava a ver quem era. Puxei do telemóvel, liguei para o número que tinha, e passei-lho. Exclamações de entusiasmo. Pois… José António não conhecia porque por ali o nosso amigo é conhecido pela alcunha:

“- O Boinas, pois claro, então não havia de conhecer, somos muitos amigos… pelo outro nome não fazia ideia, mas… então é o Boinas, pronto, não há problema, levo-vos mesmo até ele.”

O “boinas” vem ao nosso encontro. Entusiasmado, quer-nos apresentar a todos. Leva-nos à habitação onde está o pai. Depois, é a visita à mãe, e, para o fim, ao seu próprio núcleo familiar. Diz-me que passou mal o dia, porque lá em casa não havia nada para comer, mas felizmente consegiu algum arroz e umas frutas e legumes, e agora estão todos de barriga aconchegada.

E nisto dou por mim a viver um daqueles momentos únicos que dão sentido a qualquer viagem. Enquanto a maioria dos outros portugueses que viajaram para a ilha no mesmo avião se encontrarão naquele momento recolhidos ao conforto dos seus “resorts”, ali estou, numa comunidade perdida do São Tomé profundo, noite cerrada, partilhando aquele bocadinho da vida das pessoas simples mas tão boas desta ilha.

Depois do sol desaparecer no horizonte apenas alguns podem-se dar ao luxo de usar electricidade, mas por todo o lado se acendem velas e candeiros a petróleo. Ali, na comunidade do José António, as coisas não são diferentes. Apenas na venda do Silvino – proprietário do precioso telefone que com altos e baixos me tem mantido em contacto com o meu amigo – existe luz eléctrica. E é ali mesmo que acabamos esta visita, com uma cerveja nacional na mão.

 Dois dias antes da partida conseguimos acertar as coisas para o tal passeio com o José António. O que eu quero descobrir é um hospital perdido, que se integrava numa roça abandonada após a independência e que hoje está a ser lentamente engolido pela selva. Quando lhe falei neste local e ele disse que sim senhora, sabia onde era, percebi logo que aquilo não ia correr bem. Eu, que não ando nesta vida há meia dúzia de dias, senti a hesitação na voz, a expressão de quem quer, muito, mas não sabe. Mas não me desmanchei. Por oito Euros sempre ajudaria aquele bom homem, e, quanto mais não fosse, ia dar uma volta na selva com alguém que ficasse de olho na temida cobra negra.

E as coisas foram exactamente assim. Lá nos internámos no mato tropical, ele a fingir liderar, eu a ver que em cada encruzilhada ele estava a tomar a direcção errada. Por fim, já com cinco quilómetros de selva nas pernas e uns litros de suor escorrido, tive que abrir o jogo, com a diplomacia possível. Pelo GPS via que estávamos a uns meros quatrocentos metros do jipe, e disse-lhe isso mesmo. Ficou encabulado, como seria inevitável que ficasse. Pouco depois encontrámos um colector de vinho de palma que nos indicou a melhor forma de regressarmos à viatura, sem que tivessemos que desfazer a longa distância que percorremos sem ir a lado algum.

O “boinas” ia acabrunhado com o falhanço, e eu, sem saber o que fazer para o ajudar a sair daquele buraco. Ainda nos mostrou um outro hospital de roça, também interessante, mas sem o impacto do outro, que ficaria a conhecer apenas pelas fotografias. E o dia acabou na sua comunidade, onde não se recriou o ambiente extraordinário da primeira visita. Despachei uma cerveja e vim-me embora.

Vi o José António mais uma vez, no dia da despedida, no aeroporto, claro. A sombra do fiasco parecia ter-se levantado e ele fez tudo para me facilitar a partida, informando-se, atarefado, de cá para lá, explicando os procedimentos. Dei-lhe a atenção possível, perante a meia dúzia de pessoas que por ali estavam e a quem também queria dizer um condigno adeus.

Não me recordo do último momento, do derradeiro abraço. Mas não me esquecerei deste garboso homem, que leva a existência possível, satisfeito por ter um novo dia para viver a cada nascer do sol. São assim, as coisas… há quem retire felicidade dos pequenos momentos do dia a dia, à falta de décimos décimos terceiros meses e dos tormentos agregados à sua perda. Mas aqui, são apenas aqueles magros 55 Euros que terão de dar para manter uma pequena família viva… e a sorrir.

Até breve Zé, que aquilo não foi um adeus, foi um “até à próxima”!

 

Artigo do blog Cruzamundos. Mais textos em http://www.cruzamundos.com/



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