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Sede de montanha
31 January 2021 Written by 

Sede de montanha

Em busca dos recantos fantásticos da Arrábida, no encalço da meia montanha da Serra do Risco (GCH744). O objetivo passava por alcançar o vértice geodésico que fica no topo da crista montanhosa, sobranceiro sobre o mar imediato. Pelo caminho segui em passeio geocaching, de enigma em enigma (GC3G2FJ), passando por inúmeros pontos de interesse. A experiência acabou também por ser um aviso sério sobre a importância da água num contexto de isolamento.

A elaboração do plano, incluindo informações e sugestões, decorreu sem sobressaltos. A investida acabou por ser individual, visto que a Valente optou pelo marasmo da praia. A noite anterior foi longa e mal dormida, pelo que estava a considerar adiar a aventura. Porém, pela manhã, começou a remoer uma inquietação, que me fez saltar para um banho frio e para esta experiência. Contudo, acabei por levar apenas cerca de 1,5 litros de água, o que me complicou bastante a vida. Num dos dias mais quentes do ano, a partir do meio do percurso tive de fazer uma gestão cuidada, do esforço e da água.

Quando assentei o olhar na meia montanha da serra do Risco pressenti de imediato que o dia estava ganho. A parte inicial decorreu sem sobressaltos, em passeio acelerado pelo sopé da serra. A meio do percurso fiz um desvio para ir conhecer as marmitas de gigante (GCVZ4H). Seguindo o trilho recomendado, acabei por não demorar muito a chegar próximo do local e fiquei impressionado com o que avistei. Como estava na hora de almoçar optei inclusive por ficar mais algum tempo por ali e fui primeiro recuperar as forças nos alimentos, com a anuência de uma sombra muito acolhedora. Depois do registo andei em explorações, entrando e saindo das saliências calcárias. Fui ainda até o topo, de onde se tem uma vista generosa e fantástica para o vale mais abaixo. Fiquei curioso sobre como seria o local com o ribeiro a correr por lá. Certamente será uma visão extraordinária, com as pequenas cascatas e a vegetação que lhe dará uma envolvência de beleza. Contudo, como é natural, pela altura da visita não havia água e estava tudo deserticamente seco.

Continuando a caminhada, passei ao lado da pedreira. A paisagem foi-se tornando mais alva, menos interessante e diminuída de natureza. O passo tornou-se mais lento e empoeirado, sendo que na subida apareceram as primeiras dificuldades pela falta de água. Chegado lá acima, avistei o infinito azul. À minha frente estendia-se uma janela fantástica para o horizonte, emoldurada pelo arvoredo e rochas, onde aproveitei para descansar à sombra. Segui depois pela crista da montanha em direção ao pico. O percurso é fantástico, entre os campos de um lado e uma visão extraordinária para o abismo azul do outro. O trilho na parte superior é um verdadeiro regalo para os sentidos. É quase impossível tirar os olhos do que se estende aos nossos pés e é daqueles sítios que nos devolvem a sensação de pequenez face ao que se vislumbra.

Já sabia que iria encontrar um vértice geodésico, porventura aquele do qual todos os outros VGs em Portugal invejam a posição, pelo que a dado momento deixei de olhar para o recetor GPS e segui pela linha altaneira da montanha, com o olhar fisgado na linha de mar que parece não ter fim. Ao chegar ao VG, em grande desgaste, fui de imediato à procura de uma sombra e descansei por largos minutos, com o olhar entretido pelo horizonte azul. Fiz-me depois em busca do “tesouro”. Ainda ganhei algum tempo a ler os relatos que quem já lá havia ido.

Estive por ali mais algum tempo a aproveitar alguma sombra e retomei depois o meu périplo, já em grande desgaste físico e psicológico, por um risco de emoções no topo da arriba e até à planície. Depois de a água ter acabado, e com tanta vontade de encontrar alguém que me pudesse ajudar, comecei a ter alucinações. Os zumbidos dos mosquitos e das moscas pareciam vozes de pessoas. Porém, olhava para todos os lados, fazia pequenos desvios, falava aqui e além, mas não havia alguém por perto. Não estive perigos desumanos, mas o percurso transformou-se numa experiência de sobrevivência e um aviso sério para outras aventuras. Quando cheguei ao carro, a água escaldante de garrafa esquecida pareceu néctar dos deuses.

Artigo publicado em cruzilhadas.pt



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